Na Rua do Pinheiro

quarta-feira, 31 de julho de 2013

DEFENSOR



               Aquele cão era novo na rua. Quem lhe daria autorização para entrar no seu território? Ele é o Defensor, e como o próprio nome indica defenderá até à morte o que é seu.
               Defensor olhou mais atentamente através do vidro da janela. A noite aproximava-se e as sombras, pouco a pouco, iam tornando-se maiores o que o obrigava a semicerrar os olhos para poder distinguir melhor.
               Decididamente havia um novo cão na sua rua. Tinha de o afastar. E ladrou com toda a força para o intruso que se encontrava à esquina sob a amoreira. Tanto ladrou que a dona, pensando que ele precisava de fazer o seu xixi, abriu-lhe a porta da rua, fazendo-lhe uma carícia na cabeça, que ele adorava.
               Pé ante pé encaminhou-se para a esquina. Queria apanhar o intruso de surpresa e assim, assustá-lo de vez. Fixou o olhar na amoreira mas o local estava agora deserto.
- Teve medo de mim e fugiu. – Pensou ele. - O meu poder não tem limites.
               Continuou a andar em direcção à esquina da rua. Caminhava com vaidade e contentamento.
               Chegou finalmente ao fim da rua. Olhou em redor e não viu nada nem ninguém.
- Recuperei o meu reino. Posso dormir descansado.
               Mas eis que surge de um quintal vizinho não um cão mas uma cadela lindíssima de pelo brilhante e olhos azuis, pestanudos! Defensor tentou ladrar porque, apesar de tudo, aquela beleza doirada não pertencia ao seu domínio. Mas o som do ladrar morreu-lhe na garganta e ele ficou imóvel olhando aquela aparição que se aproximava, elegantemente.
 
               Estavam agora frente a frente. Defensor sentiu o cheiro da intrometida e achou até que era um cheiro agradável. Por seu lado, ela olhava-o enternecida e de olhos a pestanejar. No alto da cabeça ostentava dois laçarotes da cor e da forma do coração.
               Defensor acabou por conseguir dirigir-lhe a palavra:
- Sabes…esta rua é minha. Sou o rei e senhor…
- Sim!? É uma bonita rua…- respondeu ela aproximando-se cada vez mais de Defensor- Eu acabei de chegar. Tenho uma nova dona.
               A sua voz era doce e calma. Defensor começou a sentir as pernas fraquejarem.
- Será que não podes incluir-me no teu domínio? – Continuou ela - …Se não puderes, paciência. Não sairei do quintal para não me veres…
               Defensor gaguejou:
- Pois…Sim…Não…Não! Nem pensar! Eu sou um bom anfitrião. Ficas autorizada a sair para a rua sempre que queiras…para passearmos!
- Oh, que bom! – Respondeu a beleza com um risinho maravilhoso – És um cão muito simpático. Desculpa, mas ainda não me apresentei. Sou a Lady. E tu, como te chamas?
               Aquele nome soou aos ouvidos de Defensor como uma música angelical. Parecia até que o som se repercutiu no seu peito.
- Eu sou o Defensor.
               Sorriram os dois um para o outro. Deitaram-se no chão, debaixo da amoreira, olhando a lua brilhante que os espreitava envolta na escuridão do céu.
- A lua está linda… - murmurou Lady.
               Defensor, de coração enamorado, respondeu docemente:
- Pois está…


Eugénia Edviges
                                                 
 Um grande xi-coração                                                                                         

sexta-feira, 12 de julho de 2013

LENDAS - Lenda das Bicas

O Que é uma Lenda?

"É um relato transmitido por tradição oral de factos ou acontecimentos a que o povo atribui um fundo de verdade  Geralmente têm algo que é real e algo que é imaginação popular. A lenda é, por isso, mais histórica e mais verdadeira do que o conto. Não é por acaso que a lenda raramente começa, tal como o conto, com a fórmula "era uma vez" - uma fórmula que nos remete, desde logo, para um passado e um lugar longínquos e indefinidos. Cada comunidade procura sempre conservar as suas lendas, pois o povo, através delas, conta também a sua história."

Alexandre Parafita em "Histórias de Arte e Manhas"

É uma compilação de contos, recolhidos pelo autor  em zonas de Trás-os-Montes, junto de pessoas que as guardaram na memória.
Alguns contos que fazem parte do livro:

- O Príncipe Triste
- Os Gémeos e o Olharapo
- A Lenda das Torradas de Alho e Azeite
- S. Pedro e o Ferrador


Passo a transcrever uma lenda de Benavente sobre a Fonte das Bicas ou Fonte da Bica da "Caza". Esta versão é da minha autoria. Espero que gostem.

Lenda  das Bicas ou da  Fonte da Bica da Caza
         
          Num castelo situado no alto de uma montanha vivia uma rainha moura. Ela era meiga, caridosa e muito, muito bonita. O rei nunca amara ninguém como amava a sua rainha e dela dizia sempre:
- É o meu raio de sol. É o ar que respiro.
          A rainha tinha tudo para ser feliz. No entanto vivia muito triste. Nunca se vira um sorriso nos seus lábios. Mantinha a testa sempre enrugada e os olhos tristonhos por onde caíam, muitas vezes, duas lagrimazitas teimosas. O rei vivia angustiado. Tudo fazia para a animar: depunha a seus pés as mais bonitas flores campestres; oferecia-lhe aves de lindas plumagens em gaiolas doiradas; dos pomares do castelo trazia-lhe cestos de fruta fresca e sumarenta; consultara os médicos mais importantes, os feiticeiros mais experientes em práticas curativas aprendendo com eles as mais variadas rezas e unguentos.
           A tristeza da rainha chegara a todo o lado e de longe vinham poetas recitar-lhe os mais lindos versos de louvor:                                                                                                                    
                                        
                                         Rainha, moura encantada
Não escondas o teu olhar
Que este sol que nos aquece
Também deixa de brilhar

Rainha, moura bondosa
Mostra o teu sorriso agora
                                                              Que por ver tanta tristeza
O meu olhar também chora.

Rainha, moura infeliz
Nos versos faço um apelo
Canta e ri enquanto bordas
Na varanda do teu castelo

          Tudo fora em vão. Dos seus lábios apenas se ouvia um “obrigada” amargurado. Na varanda do castelo soltava os suspiros mais profundos, apesar dos seus dedos esguios bordarem, em panos de seda, lindos motivos de todas as cores.
          A causa do seu desgosto era não ter filhos. Um filho dar-lhe – ia alegria e força para viver. Seria a continuação das suas vidas. Nada nem ninguém poderia substituir essa felicidade. A rainha entristecia cada vez mais por não ter um filho, um filho há tanto tempo esperado.
            Os anos passaram e a rainha alcançou a idade em que já não poderia conceber. A sua tristeza não tinha limites, as  suas lágrimas deixavam sulcos de mágoa pelo seu rosto, que continuava belo.
               Naquela tarde, o rei contemplava do alto da torre do castelo, o mar desconhecido e profundo que se estendia até à linha do horizonte. Mar impenetrável, temeroso, impossível de atravessar. O sol afogava-se nele e o céu ruborizava, colorindo-se de violeta e laranja, qual tela de pintor imaginário. O rei voltou-se então para norte e olhou extasiado para os campos ao redor. Ao longe, entre o verde das árvores, serpenteava um rio, qual cobra prateada a rastejar. A norte havia um mundo por descobrir. Foi então que o rei teve uma
ideia que lhe pareceu a solução ideal para alegrar a sua rainha.
- Iremos viajar! Conhecer outros lugares! As novas e bonitas paisagens que iremos visitar farão com que a rainha se sinta feliz e esqueça o seu mal de não conceber.
          Nessa noite expôs a ideia à rainha que o ouviu sem mostrar qualquer interesse. Para ela nada havia que a alegrasse, que lhe desse razões para viver. Mas, ao ver o entusiasmo do marido, aceitou o convite dizendo:
- Sim meu esposo. Por que não? Viajaremos os dois para além do horizonte.
          O rei depressa deu instruções sobre tudo o que era preciso preparar para a viagem. Foram aparelhados os cavalos mais robustos do castelo. Os criados escolhidos para acompanhantes dos reis não descansaram nessa semana, tratando de todos os pormenores para que nada faltasse durante a expedição.
          E chegou o dia ansiado pelo rei. Na manhã em que partiram as nuvens afastaram-se, deixando o sol inundar o dia com uma luz quente e doirada.
          Seguiram para norte em direcção à serra salpicada de casas branquinhas e por rios de margens frondosas, cujas águas procuram escoar entre penedos.
          Passaram alguns dias. Ficara para trás aquela maravilhosa serra coberta de urze e de estevas. À sua frente estendiam-se pequenos montes encimados por casas fustigadas pelo vento e adornadas com barras de um azul inquietante. Pelas encostas espalhava-se a
humildade dos chaparros. Ali, naquela terra de beleza irreal e misteriosa, o sol era abrasador.
          A viagem continuou um pouco mais apressadamente para fugirem àquele calor impiedoso.
          O rei e a comitiva extasiavam-se com toda a diversidade daquelas terras antes desconhecidas. Em cada recanto, em cada rio, em cada penhasco descobriam novos motivos de regozijo. Apenas a rainha continuava de semblante entristecido. Impávida, olhava em frente sem mostrar qualquer emoção pela paisagem que a rodeava.
           Estava aquele dia a findar quando a comitiva parou frente a um campo que se estendia às margens de um rio. Era um prado de erva viçosa que alimentava uns toiros possantes negros como o carvão.
- É a lezíria… murmurou um dos criados curvando-se submisso frente à rainha.
           Sob os sobreiros, que embelezavam aquele espaço tão belo, os corvos esgravatavam a terra. Por vezes voavam em círculo ao redor das árvores. A este, ao alcance do olhar, erguia-se um povoado. A claridade alaranjada do pôr-do-sol incidia sobre as fachadas brancas das casas. Um lugarejo que era a sentinela daquele campo a seus pés. A comitiva conseguia distinguir searas que ondulavam sob a subtil aragem da tarde.
          A rainha olhava atentamente. Pareceu ao rei que a sua mulher estava a dar alguma atenção àquele lugar, o que não acontecera em toda a viagem.
 - Meu rei – balbuciou ela – quero pernoitar naquela povoação. Parece ser o sítio ideal para descansarmos.
          O rei sorriu de felicidade. A rainha gostava daquele lugar. Talvez, quem sabe, ali voltasse a sorrir.
           Mandou dois dos criados à povoação em busca de alojamento.
           Enquanto esperavam pelo regresso dos criados, o rei e a rainha dirigiram-se para um local de árvores frondosas, que lhes daria uma agradável sombra para descansarem. À medida que se aproximavam ouviam cada vez mais com nitidez o cantar de água a correr. Era uma fonte alimentada por várias nascentes de água límpida e fresca. A rainha ajoelhou-se junto à nascente de água e, abrindo a mão em concha, bebeu sofregamente sentindo-se depois leve como uma pena e extasiada com a frescura da água e com aquele local paradisíaco.
          Retomaram o caminho após a chegada dos criados que os guiaram em direcção à hospedagem. Seguiam pelo caminho de terra batida que conduzia à localidade.
          No dia seguinte quando o rei ordenava aos criados os afazeres para a partida, a rainha chegou perto dele e disse:
 - Meu rei, não partimos. Este local é tão lindo. Vamos ficar mais um dia ou dois para visitarmos todas as imediações.
          O rei sorriu para ela e respondeu:
- Ficaremos, minha rainha o tempo que quiser. Só quero que se sinta bem.
          Todas as manhãs a rainha ia beber água à bica antes de iniciar os seus passeios. Algo a retinha naquele local. Não sabia explicar o que sentia nem a força que a fixava ali. O rei andava feliz por ver a mulher com o semblante mais sereno. Parecia até feliz.
          Passaram os dias e as semanas.
          Certa manhã a rainha saiu do quarto apressadamente dirigindo-se a passos largos para a cozinha onde se encontrava o rei a merendar. Levava no olhar o sol da manhã e nos gestos a graça de uma ave. Ao chegar perto do rei, que a olhava espantado, disse com um sorriso resplandecente nos lábios.
- Meu rei, estou de esperanças. Vou ser mãe!
          O rei olhou a sua amada como se não acreditasse no que ouvia. Enlaçou-a pela cintura e depositando-lhe um beijo na alva testa, exclamou:
- Qua a festa comece! Que soem trombetas! O nosso príncipe vai nascer. Minha adorada.
          Passaram-se os meses. A criança nasceu sem qualquer problema para júbilo dos pais que a olhavam embevecidos.
          Os reis adoptaram aquela terra como se fosse sua. Ali tinham alcançado a felicidade. Nunca mais partiriam.
               O boato soltou-se. A partir daquela altura as mulheres estéreis vão à bica todas as manhãs beber a água milagrosa para assim conceberem e serem mães.

Eugénia Edviges

A Fonte das Bicas ficava um pouco distante da povoação  mas toda a gente ia lá buscar água por que realmente era uma água muito boa para beber.

Espero que  esta postagem vos desperte a curiosidade para o conhecimento das lendas e do que elas representam para a história local.

Um grande xi-coração