Na Rua do Pinheiro

terça-feira, 15 de outubro de 2013

As Lendas de S. Baco

            
Outra lenda da minha terra com uma versão da minha autoria.  Para isso consultei dois livros editados pela Câmara Municipal de Benavente. São eles: "Aspectos da Religiosidade Popular do Concelho de Benavente" de Mário Justino Silva e Maria Filomena Santos Henriques e "O Convento de Jenicó" de Alfredo Betâmio de Almeida.



As Lendas de S. Baco, o Mártir

            Mandado construir em 1542 por D. Luís, o convento erguia-se entre Benavente e Salvaterra de Magos rodeado por campos de searas. Construção austera, feita de materiais grosseiros. O acesso era feito por caminhos de terra batida. Tinha uma capela, um refeitório e um dormitório, este situado no primeiro andar. Nesse convento ficou instalada a Ordem dos Frades Capuchos da Arrábida, que ali viviam em penitência, austeridade e sem conforto, sobrevivendo apenas com caldo e pão. A sua indumentária era composta por capucho de burel. Andavam descalços e de cruz ao peito.
            O santo idolatrado pelos frades capuchos era S. Baco, o Mártir, cuja imagem estava exposta na capela do convento. Ali acorriam os camponeses a quem as árvores de fruto adoeciam com o pulgão. Acreditavam, com devoção, que o santo podia livrar as árvores daquela praga. Eram muitos os que procuravam as curas para os seus males junto de S. Baco, embora a sua imagem, com cerca de um metro de altura, seja desproporcionada, tendo apenas alguma beleza no rosto e nas barbas. Era também considerado o advogado contra as sezões. Por isso mesmo, as costas do santo estão gastas, devido às raspagens provocadas pelas pessoas. O pó assim obtido, “pó de santo”, era misturado com água que, pensavam, curava as malditas febres.
            Certo dia um camponês, como forma de agradecer a S. Baco o ter arranjado emprego na apanha da uva, levou um grande cacho de uvas que depositou aos pés da imagem. O cacho ali ficou durante vários dias mantendo-se sempre fresco.
            Entretanto, o camponês foi despedido sem o esperar. Revoltado, voltou à capela e, agarrando no cacho de uvas, comeu-o sofregamente, enquanto dizia muito zangado:
- Fui parvo em acreditar em ti, S. Baco. Nunca mais te farei ofertas. És um santo muito feio.
            Saiu a cambalear. Conseguiu chegar a casa com muito esforço, vindo a falecer pouco tempo depois.
            A notícia correu célere, galgando montes e povoados. A partir dessa altura ninguém arriscava rir-se da fealdade do santo com receio de lhe acontecer algum azar.
            Passaram os anos. O convento fora deixado pelos frades em 1834 e apenas o povo, devoto, continuava em peregrinação à capela de S. Baco.
            Aquele dia, que amanhecera cinzento, prometia tempestade. Os cães uivaram toda a manhã e as nuvens enroladas em poeira, tenebrosas, pareciam sufocar as casas e os campos. O vento soprou em redemoinho. E o pior aconteceu: a terra tremeu como se dentro de si estivesse um monstro a rugir com fúria.    
            O povo olhava com pavor o convento destruído pelo abalo. Mas a imagem lá estava, no seu nicho da capela, rodeada pelos escombros. Com o peito em fogo ajoelhou-se e rezou perante a imagem imaculada.
- Milagre! – Gritavam, ao verem a imagem, intacta, no seu lugar.- Como é possível?
- O melhor é levá-lo daqui para outro lugar. – Opinou alguém entre a multidão.
- Para a Igreja Matriz… - respondeu uma voz num sussurro.
            Todos acharam bem. Antes que houvesse alguma réplica do abalo era urgente levar a imagem para lugar seguro.
            Depressa arranjaram uma junta de bois que seria guiada pelo campino mais experiente da lezíria.
            No dia seguinte, ainda mal o sol despontara já o campino estava junto da imagem com a junta de bois encangada ao cabeçalho da carroça de madeira. Exibia a vara de ferrão que o ajudaria a encaminhar a junta em direcção à igreja matriz da vila.
            Chegaram os moços mais fortes e morenos da vila para ajudarem a carregar a imagem de S. Baco para cima da carroça.
            Algumas mulheres, de Salvaterra de Magos e de Benavente, juntaram-se em grupo na encruzilhada do caminho de terra batida. De lenços na cabeça e de dedos cruzados sobre o peito rezavam uma oração em surdina enquanto os trabalhos decorriam.
            Não demorou muito. S. Baco, no meio da carroça, de braço direito um pouco soerguido, parecia guiar a junta de bois.
- Vamos embora! – Gritou o campino para os animais, picando-os com a vara.
            Os animais iniciaram a marcha. Tudo correu bem até à encruzilhada que serve as duas localidades. Estacaram e não parecia que quisessem recomeçar o andamento.
- Vá! Embora!  – Gritava o campino tentando conduzir a junta através do caminho.
            Mas nada. Apesar das investidas com a vara, o campino não conseguia que os bois se movessem do lugar onde estavam. As tentativas eram inúteis.
            Todos empurravam a carroça enquanto o campino, de rosto suado, puxava os bois pela frente.
            Pouco a pouco os ânimos foram esmorecendo. Que fazer? O que é que tinham os animais?
- É obra de S. Baco. – Murmurou uma velhota vestida de preto e de xaile pela cabeça.
- Quererá ir para Salvaterra? – Perguntou a sorrir um dos ajudantes.
            Todos se entreolharam. Talvez. Porque não?
                       Ilustração na página 56 do livro "O Convento de Jenicó". Desenho de João da Silva
            
             O campino puxou os bois para o lado de Salvaterra. Com a vara encaminhava-os enquanto gritava:
- Volta boi!  Ei!
            Perante a admiração de todos, os bois recomeçaram a marcha em direcção a Salvaterra de Magos. Mas eis que, andados escassos metros, as rodas da carroça ficaram atoladas no barro do caminho! Desanimados, os ajudantes e o grupo de curiosos, sentaram-se à borda do campo cultivado, sobre as ervas altas e os tufos de malmequeres da cor do sol.
            Não sabiam que dizer nem que opinar. O poder de S. Baco era enorme e nada mais iriam conseguir.
- Aproxima-se alguém…- disse o campino segurando ao alto a vara de ferrão. Colocara o barrete sobre os ombros para limpar o suor da testa pelo esforço despendido.
            Olharam. Aproximava-se devagar, apoiado a um bordão, um velhote de barbas espessas e grisalhas. Ninguém o conhecia. Parou frente à junta de bois e pousando as mãos sobre a cabeça dos animais, murmurou num fio de voz:
- Voltem para trás para o nicho da capela, que o carro andará imediatamente…
            O campino assim fez impelindo os animais a retrocederem.
- Ei! Volta boi! Embora!
            Como por milagre os bois voltaram com a maior das facilidades e o regresso ao convento fez-se rapidamente e sem esforço algum.
            No fim, contentes do dever cumprido, todos procuraram com o olhar o velhote das barbas para agradecerem. Mas desaparecera sem que ninguém reparasse no caminho que seguira.
            De novo se ouviu a voz da velhota vestida de preto e de xaile pela cabeça:
- Era o S. Baco…! Era o S. Baco!
            Persignaram-se batendo forte no peito e na testa.
            As lendas de S. Baco mantiveram-se até aos nossos dias, passando de boca em boca, de geração em geração. Talvez um pouco adulteradas pela imaginação do nosso povo. E pela criação de um escritor.

Agora o dicionário:

sezões - febres altas provocadas pela picada do mosquito (paludismo)
encangada - quando a junta de bois está presa na canga (peça que se coloca sobre a carroça)
persignar - fazer o sinal da cruz na testa, nos lábios e no peito


Eugénia Edviges /Setembro 2013

Uma grande xi-coração

   


            

sexta-feira, 4 de outubro de 2013

A Gaita Milagrosa - História Tradicional

Aqui fica mais uma versão minha de uma história tradicional. Espero que gostem

A Gaita Milagrosa


            Numa aldeia perdida no meio das serranias vivia um homem que tinha uma gaita. Mas não era uma gaita qualquer. Acontece que, quando o homem levava a gaita à boca e fazia soar os acordes de uma música, as pessoas começavam a dançar no meio da rua. Era uma alegria sempre que o tocador soltava sons da sua gaita. Todos dançavam e andavam felizes.
            Certo dia, o tocador estava sentado à porta de sua casa. Na rua, passava um sujeito com um burro carregado de loiça que andava a vender. O tocador começou a tocar e logo o dono do burro e o próprio animal começaram a bailar. O vendedor dançou, dançou e o animal também cabriolava com as patas traseiras. O pior é que, com os saltos do burro, toda a loiça caiu no chão e partiu-se em mil bocados.
- Pára! Pára! – Gritava o velho não parando de dançar!
            Mas o tocador estava tão distraído a tocar a sua música que nem dava pelo que se estava a passar.

                                             ( ilustração de Maria Keil)

- Pára! Pára! – Tornou o velho a gritar, enquanto dançava acompanhado pelo burro.
            Foi então que o tocador reparou no que estava a acontecer e parou de tocar.
- O que tu fizeste! Malvado! Terás de me pagar toda a loiça partida!
- Mas eu…só toquei…! Como posso ser culpado de vossa excelência dançar mais o seu burro…? Além disso não tenho dinheiro para pagar.
- Ah, sim!? Não pagas? Vais ver o que te acontece.

            E agarrando o burro pelas rédeas desandou dali indo direitinho ao juiz fazer queixa do tocador. Este foi chamado à sua presença.
            Quando o tocador chegou levando a gaita dentro do bolso das calças, o juiz disse-lhe:
- És acusado de ter partido toda a loiça deste homem.
- Eu, senhor doutor juiz!? Eu não sou culpado. Toquei a minha gaita e este senhor e o burro puseram-se a dançar… Não fui eu.
- Se não tocasses essa maldita gaita eu não dançaria nem o meu burro. A gaita é milagrosa, senhor doutor juiz – respondeu o vendedor exasperado.
- Como é que uma gaita pode ser milagrosa? – Perguntou o juiz, sorrindo.
- É verdade senhor doutor… - acrescentou o velho – Pode crer naquilo que lhe digo. Este homem tem uma gaita milagrosa… Foi por causa da sua gaita que toda a minha loiça caiu no chão e se partiu em bocadinhos.
            O juiz pensou que o vendedor não estava bom da cabeça. Mas enfim! Tinha de encontrar uma prova para resolver a questão.
- Pois bem! – Disse o juiz, voltando-se para o tocador – Toca um pouco para eu ouvir.
            O gaiteiro tirou a gaita do bolso e levando-a aos lábios começou a tocar. Logo o velho, que estava encostado a uma parece começou a dançar, rodopiando sobre si. O juiz que se preparava para fumar um cigarro, levantou-se da secretária e bailou muito animado.
            A mãe do juiz que há muitos anos estava entrevada numa cama, num quarto que dava para o escritório, apareceu de braços ao alto e a bailar de contente. Estava tão feliz que até cantava:

Vá de folia,
Vá de folia
Que há sete anos
Não me mexia.

            O escritório do juiz tornou-se num animado salão de baile.
            Passados alguns minutos, o juiz estava tão cansado, que pediu ao tocador para parar. O homem obedeceu. Tanto o vendedor como o juiz e a mãe estavam cansados e suavam com abundância.
- Podes ir-te embora. – Disse o juiz para o tocador, limpando o suor da testa. – Não te posso culpar pois curaste a minha mãe que há muitos anos não se podia mexer. Estás absolvido!
            O tocador saiu do escritório do juiz muito satisfeito e era tão grande a sua alegria que foi para a praça da aldeia tocar. Toda a gente saiu das suas casas e bailou até de madrugada.
            O velho vendedor é que não ficou muito satisfeito, mas resignou-se. Foi dali comprar mais loiça para vender prometendo a si próprio nunca mais passar perto daquela aldeia.


Eugénia Edviges

Um grande xi-coração